Os outros

Você não acha estranho que existam os outros? Eu também não achava, até anteontem, quando tive o que, por falta de nome melhor, chamei de SCA — Súbita Consciência da Alteridade.

Estava no carro, esperando o farol abrir e comecei a observar um pedestre, vindo pelo calçada. Foi então que, do nada, senti o espasmo filosófico, a fisgada ontológica. Simplesmente entendi naquele instante, que o pedestre era um outro: via o mundo por seus próprios olhos, sentia um gosto em sua boca, um peso sobre seus ombros, tinha antepassados, medo da morte e achava que as unhas dos pés dele eram absolutamente normais — estranhas eram as minhas, e as suas, caro leitor, pois somos os outros da vida dele.

O farol abriu, o pedestre ficou para trás, mas eu não conseguia parar de pensar que ele agora estava no quarteirão de cima, aprisionado em seus pensamentos, embalado por sua pele, tão centro do Cosmos e da Criação quanto eu, você e sua tia-avó.

Sei que o que estou dizendo é uma obviedade tacanha, mas não são essas verdades as mais difíceis de se enxergar? A morte, por exemplo. Você sabe, racionalmente que um dia vai morrer. Mas, cá entre nós: você acredita mesmo que isso seja possível? Claro que não! Afinal, você é você! Se você acabar, acaba tudo e, convenhamos, isso não faz o menor sentido.

As formigas não são assim. Elas não sabem que existem. E, se alguma consciência elas têm, é de que não são o centro nem do próprio formigueiro. Vi um documentário, ontem de noite. Diante de um riacho, as saúvas africanas se metiam na água e formavam uma ponte, com seus próprios corpos, para que as outras formigas passassem.

Não, nenhuma compaixão (...) brotou em mim naquele momento, nenhuma solidariedade pela formiga desconhecida. (Deus me livre ser uma saúva africana!). O que senti foi uma imensa curiosidade de saber o que o pedestre estaria fazendo, naquele momento. Estaria vendo o mesmo documentário? Dormindo? (...) Afinal, ele estava existindo agora, assim como eu, você, o Bill Clinton, o Moraes Moreira. São sete bilhões de narradores em primeira pessoa (...). Sete bilões de mundinhos. Sete bilhões de chulés. Sete bilhões de irritações, sistemas digestivos, músicas chicletentas que não desgrudam da cabeça (...). Até a rainha da Inglaterra, agorinha mesmo, tá lá, minhocando as coisas dela, em inglês, por debaixo da coroa.

Não é estranhíssimo?

Texto de Antonio Prata. Via Jornal o Estado de São Paulo (que "roubei" no aeroporto :D).

Por Thaísa Farias.

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